Negra, mulher, refugiada, LGBT… Em termos de experiência com a discriminação, Lara Lopes é praticamente uma enciclopédia. Essa moçambicana de sorriso largo e olhar decidido chegou ao Brasil em 2016, trazendo na bagagem a esperança de poder exercer mais livremente sua orientação sexual. “A sociedade africana ainda tem a mentalidade de que a homossexualidade é coisa do branco”, comenta, com uma ponta de ironia na voz, lembrando que recebeu, em troca do pequeno espaço de liberdade que conquistou ao se refugiar em nosso país, o peso do racismo estrutural que define em grande parte a sociedade brasileira.

Este ano, o mês da Consciência Negra ganhou contornos mais concretos e dramáticos com o assassinato de João Alberto Silveira Freitas, homem negro de 40 anos espancado por dois seguranças de um Carrefour de Porto Alegre. A tragédia maior, porém, é menos visível e acontece no dia a dia, com a autoestima da maioria das pessoas que habitam o Brasil sendo destruída e suas esperanças esmagadas.

Aproveitando a coincidência no fato de a primeira edição de INCLUSIVE ser publicada ainda em tempo de homenagearmos a população negra do Brasil, ouvir Lara era uma escolha óbvia. Corajosa e articulada, ela é uma ativista de todas as causas citadas acima. Sua voz merece ser ouvida.

I: Para você, o que é Consciência Negra?

L: Para mim, a Consciência Negra significa uma luta diária por nossos direitos, pelo direito a um espaço onde viver e poder crescer – com a educação, por exemplo. É também uma forma de expandir a percepção por parte daquelas pessoas que não têm a nossa mesma tonalidade de pele, que não é justo que sejamos separados e discriminados simplesmente pelo fato de ter uma pele de cor diferente.

I: Quando você acha que começou a nascer essa consciência em você? Já existia em Moçambique, um país onde os pretos são majoritários, ou foi aqui no Brasil, quando você teve que enfrentar uma discriminação e um preconceito mais claros?

L: Sem dúvida, viver no Brasil nos obriga a enfrentar essa questão mais firmemente. Em Moçambique, pode-se fingir que ela não nos afeta, pois vemos mais pessoas negras em altos escalões e como altos executivos – e aqui, não. Nas escolas, a maioria é negra – e aqui, não. Mas não é que não exista preconceito de cor. Os donos das empresas são geralmente imigrantes europeus.

I: Você também é mulher – o preconceito é maior por isso?

L: Eu ia falar exatamente sobre isso, o fato de que, em Moçambique, eu sentia mais o preconceito de gênero do que propriamente o de cor. Porque lá, como aqui, espera-se que as mulheres aceitem ser pessoas inferiorizadas, educadas para serem submissas aos homens. Isso é verdade lá em Moçambique e é verdade aqui no Brasil, na comunidade africana, que reproduz esse modelo e até o amplia, como se temessem que uma africana independente colocasse em risco a segurança de toda a comunidade. Fora da comunidade, o preconceito é multiplicado, na medida em que enxergam uma mulher, uma mulher preta e uma mulher preta refugiada da África.

I: E ser homossexual – aguça ainda mais o problema?

L: Ser negra e homossexual é ainda mais duro. Mas não é mais duro para a sociedade brasileira, é mais duro para a sociedade africana, porque ainda há a mentalidade presente em nossos países de que a homossexualidade é coisa de branco. Aqui no Brasil nunca sofri preconceito assim na cara dura, mas já sofri na cara dura por um africano pela não aceitação de também existir a homossexualidade nos países africanos.

I: Sua experiência de mãe dentro de um casamento não convencional trouxe algum alívio para essa questão ou somou mais problemas?

L: Minha experiência como mãe casada com outra mulher tem sido bem positiva. A criança trouxe uma tranquilidade maior para enfrentar a violência contra as minorias sexuais. Embora eu tenha uma aparência, uma forma de vestir, de andar, um corte de cabelo que não deixa qualquer dúvida para ninguém, não sou uma pessoa de expor. Talvez isso acabe limitando a intenção das pessoas, a vontade das pessoas de querer manifestar a homofobia.

I: Zumbi dos Palmares disse que “nascer negro é consequência, ser negro é consciência”. Essa frase faz sentido para você em um nível pessoal?

L: De certa forma, ela resume minha luta. Não basta nascer negro, temos que lutar por uma sociedade igualitária. Infelizmente existem pessoas que nascem negras, mas não têm consciência negra. Um exemplo claro disso é o presidente da Fundação Palmares. Ele é um negro que não tem a Consciência Negra e diariamente faz questão de mostrar isso. Acha que nem deveríamos celebrar essa data de 20 de novembro. Então, na consciência dele, ele não se sente parte dessa luta, como se não fosse com ele o fato de que a gente vê no mundo inteiro negros sendo pisoteados, negros sendo assassinados, negros sendo diminuídos.

I: Fale agora sobre suas esperanças e tente sopesá-las em relação à realidade política do Brasil agora e nos próximos anos.

L: Minha esperança sincera é que dias melhores venham para o Brasil, a exemplo do que ocorre nos Estados Unidos, em que os diversos fatos que aconteceram levaram a comunidade negra para as ruas. Espero que o Brasil possa usar o exemplo dos Estados Unidos e, em um futuro próximo, a gente consiga reverter esse cenário. Para isso, temos que ir às ruas protestar, mas também buscar com sabedoria e conhecimento ocupar cargos nas empresas privadas e nos órgãos públicos, criando espaços igualitários junto com as outras comunidades. Isso é o que espero, não apenas como integrante da comunidade Negra, mas também como lésbica.